A Amazônia teve 21% do seu território desmatado, o Cerrado já perdeu 51%, a Catinga 50% e o Pampa pode acabar na próxima década. Diante dessas ameaças, o agrônomo Alvaro Delatorre invoca uma reação imediata. Para ele, é preciso deixar de tratar a natureza como mercadoria, a ser explorada visando exclusivamente o lucro em curtíssimo prazo.
É imperioso ainda travar a devastação com uma série de medidas, entre elas um castigo severo para incendiários, desmatadores e outros inimigos do meio ambiente. Urge também atualizar o Imposto Territorial Rural (ITR), através do qual a União arrecada menos em um ano do que a prefeitura de São Paulo recolhe em apenas três meses de IPTU.
Nas próximas linhas, Delatorre, que integra o Setor de Produção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no RS (MST/RS), conta isso e muito mais. E não poupa as prefeituras que, nas suas palavras, estão menos interessadas em proteger a natureza do que em contratar o cantor sertanejo Gusttavo Lima. Confira:
Brasil de Fato RS: Vou começar perguntando sobre a situação no estado e no país. Como está o projeto do MST de plantar 100 milhões de árvores?
Álvaro Delatorre: A situação é desesperadora. Nada visto na história da humanidade. Está acontecendo aquilo que a gente já havia denunciado há muito tempo. O capitalismo é capaz de promover uma ruptura metabólica socioambiental. E faz isso porque interpreta a natureza como mercadoria. Transforma todos os bens da natureza em mercadoria e faz esse rompimento socioambiental.
O que acontece na Amazônia é um exemplo mais claro. A Amazônia é cultivada há milhões de anos pelos povos de lá em simbiose entre homem e natureza. A presença do capital rompe isso de tal forma que a natureza possa ser só um instrumento de lucro. É a síntese.
Tudo o que estamos vivendo, como o aquecimento global e as mudanças climáticas e seus efeitos, tem a ver justamente com um sistema que se apropria da natureza enquanto um bem e pensa apenas no curtíssimo prazo?
Exatamente. Quem explora a natureza na perspectiva do lucro, está imbuído de um propósito de curtíssimo prazo. Esta é a questão de fundo. O resto é decorrência. O Estado neoliberal, que sucateia as estruturas públicas, não cumpre a sua função de fiscalização, é motivado por essa perspectiva. Seu discurso nega a crise climática, nega o aquecimento global, nega as estruturas de Estado que tem o papel de cuidar do ambiente natural. E esse recurso…
Logo, a grande ameaça que a Amazônia está sofrendo é uma ameaça que pode ser debitada na conta do capitalismo e dos capitalistas.
Não existe essa separação entre o que está acontecendo e a presença do capital. Na nossa interpretação da crise climática não dá para pensar nela desvinculada da estrutura fundiária. No Brasil, o problema climático é uma questão agrária. A questão agrária, a partir de tudo que está acontecendo – da forma como usamos os recursos naturais, o solo – transformou-se em [algo] central.
A questão ambiental não está separada da agrária. E não é só a Amazônia, viu? São todos os nossos biomas. A Amazônia tem 21% do seu território desmatado e isso já passa de 800 mil hectares. O Cerrado está com mais de 51% de desmatamento, a Caatinga está também com mais de 50% de desmatamento. A Caatinga está invadindo territórios do Cerrado. Já tem mais de 250 mil hectares do Cerrado que virou Caatinga.
Mas o caso da Amazônia é mais alarmante porque, nesse último período, aquilo que conhecemos como o “pulmão do Mundo” emitiu mais gases de efeito estufa do que absorveu de dióxido de carbono. Um santuário – e não falo essa expressão por acaso, porque acho que alguns lugares no Brasil precisam virar santuário e parar com essa história de querer explorar petróleo nesses lugares – mas, nessas últimas semanas, a Amazônia não cumpriu com a sua função. Segundo alguns pesquisadores, está numa situação de irreversibilidade. Chegamos no limite da sua exploração.
A Amazônia só existe porque construiu um microclima que permite a sua existência. Na hora que você desmata, que substitui uma árvore que tem uma capacidade enorme de reciclar água e transforma isso num pasto que tem uma capacidade muito menor de reciclar água, é lógico que vai dar problema. A natureza não tem mais tempo para esperar.
Mas esse mesmo capitalismo que nos fez chegar a esse ponto, está tentando se reinventar através do dito capitalismo verde.
Na nossa perspectiva, é uma falsa promessa. Quando a gente ouve na imprensa que “o Agro é tec, o Agro é pop, o Agro é tudo”. É uma venda de ilusão. Todas as tentativas do capital de se reciclar diante disso é venda de ilusão para manter a sua taxa média de lucro. É o que acontece com os créditos de carbono. Não vão alterar em nada o aquecimento global. Se a minha atividade econômica é deficitária, eu compro crédito de carbono de alguém que, na sua atividade, é superavitária. Não é solução. O que precisamos é outra estratégia de desenvolvimento.
A ministra Marina Silva, no lançamento do Comitê de Emergência da Situação Climática, disse que deveríamos ter começado a agir lá em 1992, na Eco 92…
Volto a insistir na minha tese inicial. O discurso negacionista está a serviço do capital. Não é só a Marina. Tem pesquisadores sérios que já vinham chamando atenção para esse aspecto. É parte de uma mesma estratégia. Por isso que na época da covid-19, houve pesquisadores que chamavam de agrocovid…
O que é agrocovid?
A covid-19 é o resultado da presença do capital nesses territórios e do aquecimento global. Existe um vírus mas que está numa situação de harmonia com aquele ambiente. Aí, a presença do capital expõe esse vírus. Então, ele encontra num sistema de produção, por exemplo, um campo de concentração de aves, sofre uma pressão, se altera e isso passa a ser um problema. Pode contaminar o ser humano e trazer as consequências (graves). Por isso, muitos pesquisadores chamam de agro vírus. Agora, nós temos a agro fumaça, não é?
O MST lançou o plano Plantar Árvore, Produzir Alimentação Saudável e se desafiou nos municípios onde tem algum tipo de influência, nos nossos assentamentos, a plantar 100 milhões de árvores. Nosso objetivo eram três. O primeiro é, efetivando essa meta, elevamos a consciência ambiental. Porque o ato de plantar uma árvore não pode ser um ato mecânico. Tem que ser um ato de amor à natureza e com aquele território. Tem que preservar essa árvore. Por isso, a gente diz que não abrimos covas mas berços. Nesse berço a gente deposita uma vida que precisa ser cuidada.
Quando o MST diz que precisamos plantar 100 milhões de árvores, é porque entendemos que, fazendo isso, a gente constrói uma correlação de forças e uma consciência ambiental maior. O ato de plantar tem que ser consciente pelo que representa.
Quando falas em territórios, seria nos assentamentos da reforma agrária e nos acampamentos?
Sobretudo nos assentamentos. Mas temos situações diferentes. Temos acampamentos que existem há 15 ou 20 anos. Não são assentamentos porque não foi emitida a posse da terra para o Incra e, portanto, o instituto ainda não efetivou o assentamento.
Temos plena consciência de que, só por conta da nossa força, somos insuficientes. A gente precisa da solidariedade da sociedade. Então, esse é o primeiro objetivo. O segundo objetivo é a gente continuar fazendo as denúncias de tudo aquilo que está acontecendo. É uma resistência ativa. Vem do ato de plantar mas também da ação de denúncia. E tem um terceiro grande objetivo, que é ter uma elaboração popular sobre a questão ambiental. Não a partir da perspectiva do capital mas da perspectiva popular. Ainda não fizemos o balanço deste ano, mas em nível nacional estamos com 25 milhões de árvores plantadas.
Há quanto tempo que foi lançado o plano?
No final de 2019…
Teve a pandemia…
Que teve a pandemia, não é? Que aqui no Rio Grande do Sul tu plantas árvores em junho, julho e agosto. É o período. Então, praticamente 2019 não existiu. Foi só o lançamento. De fato, as ações começaram a acontecer. De despertar o Movimento para a questão. No fundo, também queremos ecologizar o Movimento. Mas não só o MST. A gente precisa ecologizar a CUT. A gente precisa ecologizar a gente precisa ecologizar a vida. Não tem outra alternativa.
Qual é o papel das prefeituras na questão das mudanças climáticas. Por quê? Já disseste que o estado e a União são abstrações. A rigor, não existem. O que existe é a vida que se dá nos municípios. Portanto, sob a supervisão das prefeituras. Só que as prefeituras andam devagar, quase parando, nesse aspecto de cuidar da natureza. Como está isso?
As prefeituras estão preocupadas é em contratar o Gusttavo Lima para fazer show. Aí tu queres o quê? É difícil. Em síntese, é isso mesmo. As pessoas vivem nos municípios. E quando acontece qualquer tipo de catástrofe… Estou dizendo isso porque vivenciamos isso em Nova Santa Rita [município da Região Metropolitana de Porto Alegre]. Em menos de 365 dias, o município sofreu quatro catástrofes ambientais. Uma por conta da seca. Quando não tens água para beber, quem te leva a água é o prefeito ou a prefeita. É a prefeitura que tem que disponibilizar de recursos, de pessoas, de equipamento.
Nos territórios camponeses, aqui no caso especificamente Nova Santa Rita e Eldorado Sul, temos muita gente que faz horta. No verão, é natural que a produção reduza pelo déficit hídrico. Quem tem que ter um programa de incentivo à produção de bacias para captação de água, de açudes, poços artesianos, é a prefeitura. Quando acontece um vendaval, como aconteceu faz pouco e destelhou quase 100 casas, as pessoas foram buscar lona com a prefeitura. E depois brasilit, telha, o que for.
Perguntei ao presidente da Famurs (Federação dos Municípios do RS) “o que vocês vão fazer para tomarem consciência de que quem ampara as pessoas são as prefeituras?” Elas devem tomar consciência dessa problemática e botar no plano diretor ações ambientais.
Tenho um exemplo que vale a pena contar. Maringá, no Paraná, aprovou uma lei dizendo que, para cada carro vendido pelas concessionárias locais, deveria se plantar uma árvore. Está na lei municipal. Foi aprovada e perdurou por mais de 10 anos e nunca a prefeitura havia feito nenhuma ação com relação a isso. Motivado por esse plano, o MST pediu uma audiência com o prefeito e disse “queremos executar esse passivo”. Em dois anos, plantamos 80 mil árvores no assentamento Eli Vive…
A prefeitura deu os recursos?
A prefeitura comprou as mudas e nós oferecemos territórios para esse plantio. As concessionárias e a prefeitura ampararam com assistência técnica, essa coisa toda.
Não sei se é o suficiente para resolver o problema da emissão de gases de efeito estufa. Valeria a pena até a gente fazer esse estudo de fato: quantas árvores a gente precisa plantar para poder compensar a fabricação de um carro?
É algo que a Federação Nacional dos Municípios e aqui a Famurs poderia levar adiante.
Com certeza. Mas eles querem o Gusttavo Lima.
Eles querem o Gusttavo Lima. Eles querem implantar o Gustavo Lima na cabeça das pessoas.
Exatamente. É o agro na cabeça. E essas músicas que… pelo amor de Deus. Então, na medida em que as prefeituras tomam consciência do seu papel, o que a fazemos com os currículos escolares das escolas municipais? A questão ambiental tem que estar colocada.
A gente sabe que o que promove o aquecimento global é o capital. Mas se, no teu ato, não és capaz de ter uma atitude que respeite a natureza, tu não lutas por coisas maiores. Se a gente faz a seleção do lixo em casa, somos capazes de tomar consciência e fazer lutas maiores. Tens um ato político que coincide com a tua prática social. O ato de preservar, de zelar, de cuidar, de separar o lixo, o material reciclável, é um ato consciente que te leva também a fazer lutas maiores.
Agora, tu deixaste uma bola picando para, por exemplo, todos os vereadores de Porto Alegre. Porque essa proposta de Maringá é muito interessante. Até porque aqui talvez seja mais grave a situação, na medida em que o prefeito (Sebastião Melo, do MDB) mandou derrubar 500 árvores no Parque da Harmonia. Porque a nossa proposta é mais derrubar árvore do que plantar árvore. Então, os vereadores que têm sensibilidade, os progressistas, poderiam propor algo semelhante. Não só no Harmonia mas na Redenção também já que estamos vivendo uma espécie de ecocídio.
Mas essa é a lógica. O neoliberal está a serviço do capital. Não tem conversa.
Tem uma frase do (escritor uruguaio Eduardo) Galeano a qual diz que se a natureza fosse um banco já teria sido salva…
Com certeza.
E tu defendes que os crimes contra a natureza deveriam ser vistos como crimes hediondos. Alguns países da América Latina já têm nas suas constituições, como a Bolívia, a Colômbia, os direitos da natureza.
As pessoas estão morrendo. Se o meu ato mata pessoas, o que eu faço tem que virar hediondo. Não tem outra alternativa. Como vamos encarar a contaminação ambiental? Usando aqui uma expressão do Paulo Freire: “Para problemas drásticos, soluções drásticas também”.
Não tem jeito. As pessoas estão morrendo agora, sufocadas. Vamos ter crise em São Paulo. Estamos vivendo quase a realidade que foi a covid. Nossos hospitais não dão conta de atender as pessoas. Então se o meu ato… Mas não é do peão que botou fogo. Tem que penalizar o peão também. Mas tem que penalizar o proprietário que autorizou e que contratou o peão para fazer. Tem que virar crime hediondo pois mata pessoas e coloca em risco a presença do ser humano no planeta. Enquanto a gente não entender que árvore tem direito… Por isso defendo a ideia dos santuários. Que o rio tem direito, os componentes da natureza têm direito. É preciso rever isso juridicamente.
Quando você fala que as pessoas vão sofrer, que vão morrer, é preciso lembrar que, obviamente, o SUS vai ser sobrecarregado. O governo federal terá que investir mais recursos por conta de quem manda queimar floresta porque vai causar doenças respiratórias de modo quase pandêmico, como está acontecendo agora no Brasil. Tem esse custo também.
Isso é uma distorção no custo de produção. Quando o capitalista levanta o custo de produção da soja, da cana-de-açúcar, do gado, ele não inclui nessa conta o custo social, as consequências e a pressão que isso vai ocasionar no SUS. E aí é o Estado…Isso é muito evidente no caso dos agrotóxicos. E temos subnotificação dos problemas causados pelos agrotóxicos. Mas na composição do custo não está colocado.
Quando aconteceu o episódio em Nova Santa Rita (contaminação das lavouras orgânicas causada por pulverização aérea de venenos agrícolas por parte de fazendeiros da região) as pessoas ficaram doentes. Onde buscaram socorro? Nos postos de saúde. No SUS. E no segundo episódio que tivemos em Nova Santa Rita, o prefeito destacou uma junta médica específica para atender as famílias. Quem paga esse custo? A sociedade. No fundo, é uma falsa composição de custo.
O Brasil teria que tratar agrotóxicos como se trata o cigarro, o tabaco. Há uma carga de imposto e de cobrança social pelo uso daquilo.
É uma questão a ser considerada. O fato é que o Brasil deixa de arrecadar de R$ 10 a R$ 12 bilhões por ano devido à isenção do ICMS e do imposto industrial dos agrotóxicos. E além de deixar de arrecadar, gasta para resolver o problema das contaminações das pessoas que chegam ao SUS.
As pessoas podem perguntar de onde virá o dinheiro para enfrentarmos todos esses riscos ambientais. Já observaste a benevolência que é o ITR, o Imposto Territorial Rural, pago por esses grandes depredadores da natureza. E quando é pago. É porque com o ITR, um tributo federal, a União arrecada muito pouco. E notas que a cidade de São Paulo arrecada mais de IPTU do que o Brasil inteiro de ITR.
Posso precisar um pouquinho mais esse dado agora, que é de estudo feito pelo Instituto Escolhas. É o seguinte: a arrecadação do IPTU da cidade de São Paulo de três meses, não é do ano inteiro, é mais do que o Brasil arrecada de ITR. A União arrecada, em média, R$ 2,5 bilhões por ano de ITR. Se fôssemos apenas fazer um ajuste pela inflação dos últimos anos, sairíamos desses R$ 2,5 bilhões para R$ 35 bilhões de ITR. A gente teria R$ 30 bilhões para ações de fiscalização, de transição energética, de valorização da produção de alimentos, da soberania alimentar, para fazer a reforma agrária.
O Brasil é muito rico, mas tem um congresso que francamente…
De novo, volta a primeira questão: tudo ao serviço do capital.
Falaste da Amazônia, do Cerrado, mas temos aqui o bioma Pampa. O pesquisador Valério Pilar, da UFRGS, adverte que, se seguirmos a destruição como está indo, o Pampa não resiste a mais 15 anos. E o Pampa é um bioma que fundamental para o ecossistema. E a gente viu isso agora com as enchentes no estado.
De novo, presença do capital. Quem está ocupando esse território? É o plantio de soja. Defendo a tese que, no bioma Pampa, deveria ser proibido plantar soja e milho. Nenhum agrônomo de sã consciência poderia prescrever plantio de soja e milho nesses territórios. Não tem zoneamento climático para isso. Não existe. O que nos deixa mais apavorados é que ninguém fiscaliza.
Não é só a destruição dos campos nativos. Falo também da destruição das matas ciliares, muito presentes no Pampa. Estão destruindo reservas ambientais. Estão derrubando as matas ciliares como aconteceu no Vale do Taquari. E elas funcionam como esponjas. São fundamentais para evitar o assoreamento dos rios. Protegem os cursos d’água e que tem capacidade de reciclar água nesses territórios. Quando destróis tudo e colocas soja no lugar é evidente que isso não tem futuro. Estamos apostando numa perspectiva sem futuro. E acontece no Pampa e no Cerrado.
Então, estamos fazendo uma opção pela presença do capital que está interessado única e exclusivamente em ter lucro em detrimento desses ecossistemas e dessa biodiversidade. E das populações que ali vivem.
Quando se olha para o Pampa ela parece um descampado mas, na verdade, é muito rico com uma biodiversidade imensa de três mil espécies de animais e plantas. É interessante que o bioma pode conviver bem com herbívoros, ou seja, gado, mas não com a soja.
Os pecuaristas familiares estão no Pampa há 200 anos e convivendo com o território e essa biodiversidade. No caso do Pampa, tenho defendido a tese de proibir o plantio de soja e de milho. Não tem zoneamento climático para isso.
* Este texto é uma versão reduzida da entrevista ao podcast De Fato, do Brasil de Fato RS. Assista:
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira