Na semana em que o Rio Grande do Sul foi novamente atingindo por forte chuvas, Porto Alegre sediou o seminário “Crise Climática e Justiça Ambiental: o papel das Defensorias Públicas na Prevenção e Reparação”. O evento, que faz parte do Encontro Nacional de Ouvidorias de Defensorias Públicas, teve início na última quarta-feira (25).
Quatro meses desde o pior desastre climático já vivenciado no estado, as chuvas voltaram ao RS, atingindo 52 municípios e impactando 716 pessoas, sendo 367 desabrigadas e 349 desalojadas, de acordo com a Defesa Civil. Em Porto Alegre, várias regiões voltaram a registrar alagamentos, como o bairro Sarandi, um dos mais atingidos nos eventos de maio, e partes do centro.
Segundo levantamento do Observatório das Metrópoles, a enchente de 2024 atingiu principalmente as áreas mais pobres. “Todos os gaúchos foram afetados de alguma forma pelas enchentes, mas quando comparamos as áreas alagadas com a renda média de cada região, dá para perceber que as áreas mais pobres são as mais atingidas”, afirma o pesquisador André Augustin.
A primeira mesa do Seminário debateu e trouxe compartilhamento de vivências com falas dos movimentos sociais sobre as enchentes. O encontro teve como convidados a diretora-executiva da Themis Gênero e Justiça, Márcia Soares, a representante do uances: Grupo pela Livre Expressão Sexual Hack Basilone, o representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra Alvaro Delatorre, o coordenador do Movimento Nacional de Luta pela Moradia (MNLM), Cristiano Schumacher, e o presidente do Conselho do Povo de Terreiro do estado do RS , Baba Diba de Iyemanja.
“Se nós queremos uma sociedade mais justa, mais humana, mais fraterna, em que caibam todas, todos e todos, é esse trabalho que nós devemos encabeçar todos os dias. E é essa riqueza de oportunidades que nós encontramos todos os dias também nas ouvidorias, quando nós temos a possibilidade de trabalhar com vocês e construir com vocês. Construir a sociedade brasileira de uma forma igualitária, inclusiva, harmoniosa, em que os direitos humanos não fiquem somente garantidos enquanto direitos fundamentais na Constituição Federal, mas que possam ser efetivamente construídos por nós todos os dias”, ressalta a presidente do Conselho Nacional de Ouvidorias das Defensorias Públicas (CNODP), Maria Aparecida Lucca Caovilla.
Violações
Em sua fala, Hack destaca a situação da população LGBTQIA, a invisibilidade, a falta de dados e o despreparo para atender a população. “Temos que considerar que existe um antes, um durante, e um pós-enchente, que estão atravessados por questões que já nos afetam historicamente enquanto população, e que já são luta para nós, como a questão da habitação. São pessoas, muitas vezes, que já estão em situação de vulnerabilidade com relação a um teto para morar. Quando chega a situação da enchente, como é que ela vai saber se localizar, achar um abrigo? Chegando ao abrigo, ela vai ter acolhimento? As pessoas estão preparadas para receber?”.
Conforme ressalta, há uma série de questões que necessitariam de um regramento específico, considerar as especificidades, mas que não são observadas. “Quando a gente faz as regras, muitas vezes a gente vai pensar em padrões e a gente esquece o quanto essas especificidades são importantes”, pontua.
“É uma população alvo de sofrer determinadas violências, que vão de abuso sexual, transfobia, agressão e ameaça de morte. Elas vão evitar de ir para esses abrigos para não sofrer as situações e ficar na situação de rua. Como fazer as denúncias? Está tudo na emergência. Foi uma série de agravantes que a situação ficou insustentável”.
Para Hack, é necessária uma informação generalizada na sociedade para que as pessoas saibam os seus direitos e como acessá-los. “Como é que eu vou fazer um estudo mais preciso sobre o que aconteceu na situação da enchente, com números, com dados, se eu não tenho esses dados? As consequências vão além do momento atual”.
Mais afetadas
“É importante dizer que desastres como esse têm uma uma dimensão humana importante, mas também uma dimensão política igualmente importante. E ela precisa ser enfrentada nessas duas dimensões. Os desastres, as guerras, elas não afetam igualmente as pessoas. E a resposta do poder público não é a mesma para as mais diversas populações envolvidas. É preciso pensar um desastre desses à luz dos recortes de discriminadores sociais de gênero, raça e classe”, expõe a diretora-executiva da Themis, Márcia Soares.
Ela ressaltou a necessidade do poder público definir as prioridades em eventos como o ocorrido em maio. Márcia destaca, entre os grupos mais vulneráveis, as mulheres, que conforme pontua, são desproporcionalmente afetadas. “Dados da ONU nos dizem que nesses grandes desastres, nas guerras, 85% da população em deslocamento forçado é formada por mulheres e crianças. Seja porque as mulheres ficam sujeitas à violação de seus corpos, seja porque as mulheres trazem uma tarefa histórica do trabalho de cuidado, que é o trabalho com as crianças, com os animais, com o sustento da casa”.
Conforme aponta a diretora, dentro de grandes abrigos, a situação que se coloca na comunidade se transforma, se desloca para dentro do espaço de uma forma totalmente desorganizada. “Uma semana de funcionamento, já começamos a receber denúncia de violência sexual nos abrigos. Quando as mulheres foram parar no abrigo, os agressores também foram. O tráfico foi para dentro do abrigo se reorganizar naquele espaço. Quando você está em comunidade, você conta com aquelas redes, com aquela organização social, com o seu vizinho”, pontua.
Na ausência dos serviços, na falta de informação e no despreparo do poder público, pontua, coube à sociedade civil e às lideranças comunitárias, como as promotoras legais, realizar o principal trabalho.
Acúmulo de forças
Citando Florestan Fernandes, o agrônomo Álvaro Delatorre, destacou que Brasil nunca deixou de ser um grande latifúndio para exportação e agora se está sofrendo as consequências desse processo. “As queimadas não são ao acaso, são crimes. E quem está promovendo esse crime?”.
De acordo com ele, o que for acontecer no planeta nos próximos cinco, 10 anos, vai determinar o nível de sofrimento, sobretudo das comunidades mais pobres. “A questão ambiental é uma questão política, porque ela incide nas comunidades mais empobrecidas de maneira diferente. A Amazônia já está em um processo de extinção. Não temos mais tempo. Lula não pode ficar dizendo que em 2030 vai acabar com o desmatamento. A Amazônia, mais do que nunca, precisa virar um santuário intocado”.
Na luta política, destaca o dirigente, se está no momento de acumular forças para enfrentar o capitalismo e as suas formas de exploração, e ele só existe porque existe capital em movimento. “Transformar os bens da natureza em mercadoria é um componente dessa expansão. Do ponto de vista da agricultura, a presença do capital sempre é uma invasão de território, porque não respeita a etno-agro-biodiversidade que esses territórios estão envolvidos. Não respeita as comunidades quilombola, as aldeias indígenas do bioma pampa. Não respeita os assentamentos de reforma agrária, os agricultores familiares do bioma pampa que estão fazendo agricultura há 200, 300 anos em perfeita harmonia com aquele bioma. Discutir a questão do agronegócio é um elemento fundamental”.
Assim como abordado pelas falas anteriores, Álvaro frisa que se não fosse a capacidade de solidariedade das pessoas, a tragédia teria sido muito maior uma vez que o Estado não está preparado para resolver esses problemas. Contudo, enfatiza quem está recuperando a destruição é a presença do Estado. “É lógico que a solidariedade tem que estar presente nesse momento porque ninguém vai deixar ninguém morrendo. Mas a presença do Estado é fundamental e faz parte desse discurso. Nós estamos num processo de acumulação de força”.
Conscientização popular
“Nem bem saímos da cheia e das queimadas e agora essa semana volta a chover em todo o estado de maneira expressiva, já causando problemas. Temos que trazer para esse debate, a importância de garantir, sustentar e exigir, do ponto de vista legal também, que se cumpra o papel do Estado. Que exista espaço de participação popular, de disputa na comunidade, de gestão da comunidade sobre as obras que vêm por aí de mitigação, de prevenção dos desastres climáticos”, afirma Cristiano.
É no cotidiano, prossegue o coordenador, que se contamina o solo. “Se a gente joga o lixo em qualquer lugar, é nosso cotidiano que os bueiros foram entupidos. É no nosso cotidiano que a gente tem que fazer a luta macro enfrentando o Estado, o agronegócio. Mas a gente precisa ter um trabalho muito grande de construção de consciência junto ao nosso povo. A gente quer voltar a uma normalidade que não existe mais. Então é, talvez, a mais importante das lutas da nossa geração”.
Segundo o coordenador, essa luta passa por afirmar direitos, por respeitar a cidadania, por construir participação popular. “Mas a gente precisa interferir na política. E nós precisamos construir uma frente política que construa, que enfrente esse debate” .
”Quem olha o mapa do Rio Grande do Sul e compara 40 anos pra cá, aquilo que era verde, agora é um bege desbotado. Porque quando tu olha no satélite tu vê que não tem mais vegetação. E quando tu baixa o zoom, não encontra mais árvore. Tu encontra arbusto e lavoura”.
De acordo com ele, é preciso avançar em alguns pontos mais pragmáticos e concretos, como a exigência do governo federal e estadual de uma política consolidada. “Uma política de Estado que tenha financiamento, mecanismos, meios para ser executada no atendimento às pessoas vítimas de desastres climáticos”.
Racismo religioso
O Rio Grande do Sul figura como um dos estados com a maior concentração de terreiros e casas de matriz africana do país. De acordo com o Ministério da Igualdade Racial, há aproximadamente 1,3 mil comunidades tradicionais de matriz africana e de terreiros que, devido ao desastre climático, foram afetados e ficaram sem acesso à água, energia, alimentos. Outros chegaram a ficar destruídos. A estimativa atualizada é que 850 tiveram perdas totais e enfrentam dificuldades para se reerguerem.
Em sua fala, Baba Diba, pontua que o povo de terreiro está na vanguarda da luta contra o racismo religioso, no esforço de tirar da invisibilidade política e social esse povo. “E aí a gente enfrenta uma catástrofe como essa, que é fruto, sim, do desequilíbrio ambiental, mas também da negligência do poder público”, ressalta
Conforme expõe, há abrigos que estão na mão de evangélicos, onde o povo de terreiro vem sofrendo violação de direito a toda hora. “Quando nega a comida, quando faz as pessoas rezarem, se abraçar na bíblia e rezarem, para poder comer e também pra poder se vestir. Foi essa perversidade que o nosso povo sofreu nos abrigos. E aí, a partir do momento que começa a chover, a gente já fica com o peito oprimido, preocupado, porque sabemos que é o nosso povo que vai estar sofrendo as consequências desse desequilíbrio climático”.
Em sua fala ele pontua que muitos terreiros tiveram perda total, como os localizados em bairros atingidos na capital, em Canoas, na cidade de Feliz. “E muitos terreiros que não foram atingidos, se transformaram também em abrigos e cozinhas solidárias. O terreiro é um espaço de acolhimento em potencial”.
De acordo com ele, a única política que o Ministério da Igualdade Racial conseguiu trazer efetiva foram as políticas de cestas básicas. “A gente não é só barriga. Terreiro não é uma casa particular. Terreiro guarnece uma comunidade, e quando todo o entorno do terreiro foi atingido, toda a comunidade foi atingida. Então é preciso pensar uma política específica para atender essa comunidade. Por exemplo, Minha casa, Minha vida, não contempla o povo de terreiro”, expõe.
Na ocasião, Baba Diba, anunciou a realização da II Conferência Estadual do Povo de Terreiro do Rio Grande do Sul prevista para novembro, assim como o lançamento de um documentário realizado com recursos obtidos da Fundação Ibirapitanga.
O seminário completo pode ser acompanhado neste link.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Vivian Virissimo