Autoridades em segurança pública do Brasil, Paraguai e Argentina, fizeram reuniões a portas fechadas na segunda-feira (30) para tratar de possíveis impactos da guerra no Líbano sobre a tríplice fronteira na América do Sul. A região é conhecida por servir de esconderijo e ponto de lavagem de dinheiro usado por terroristas e simpatizantes do Hezbollah. Paraguai e Argentina elevaram o nível de alerta de suas forças de segurança.
A maior parte das reuniões ocorreu de forma online. Foram tratados temas como terrorismo, ações militares de Israel no Líbano, a morte de Sayyed Hassan Nasrallah, líder do Hezbollah e o impacto desses eventos sobre o núcleo terrorista libanês com integrantes presentes na tríplice fronteira entre a Argentina, o Brasil e o Paraguai.
Segundo investigações da Polícia Federal, o Hezbollah está no Brasil desde 2006 e também atuaria em parcerias com organizações criminosas brasileiras.
A região da tríplice fronteira está entre as preferidas pelo grupo sobretudo pela facilidade de tráfego entre Brasil e Paraguai para operacionalização de negócios e a lavagem de dinheiro para financiamento de ações terroristas. As ações do grupo também estariam ligadas a tráfico de drogas e armas.
A Gazeta do Povo apurou com autoridades paraguaias que o país e a Argentina estão elevando seu estado de atenção para terrorismo à cor laranja (risco alto), em uma escala de quatro níveis de risco: azul (baixo), amarelo (moderado), laranja (alto) e vermelho (muito alto). Fontes ligadas ao governo paraguaio afirmam que o país também pretende restringir a entrada de pessoas vindas do Oriente Médio com a promessa de análises mais criteriosas sobre suspeitos.
No Brasil, o Itamaraty e o Ministério da Justiça e Segurança Pública foram procurados pela reportagem para saber se há medidas restritivas com foco em pessoas ligadas a núcleos terroristas no Oriente Médio que possam dar entrada no país, mas até a publicação da reportagem não houve retorno.
Por que o Hezbollah tem preferência pela tríplice fronteira?
Os terroristas do Hezbollah procuram a tríplice fronteira porque lá têm facilidade para se misturar à grande comunidade árabe estabelecida na região e operar chamando menos atenção.
Somente em Foz do Iguaçu (PR), a comunidade de árabes e seus descendentes soma cerca de 20 mil pessoas. É a segunda maior do Brasil, atrás apenas de São Paulo. Estendendo à região de fronteira, esse número pode se aproximar de 30 mil pessoas segundo estimam comunidades islâmicas regionais.
Apesar de a grande maioria dos imigrantes e seus descendentes estar naquele entorno para recomeçar a vida fugindo de conflitos, guerras civis e perseguições religiosas, há, segundo monitoramento de autoridades policiais nacionais e internacionais, um número significativo de ligados ao grupo terrorista com indícios de financiadores vivendo na região.
As informações sobre as ações do Hezbollah geralmente são levantadas na esfera do Comando Tripartite, um órgão de cooperação jurídica internacional ativo há 28 anos e que atua no mapeamento, controle e combate a crimes e transgressões na tríplice fronteira entre Brasil, Paraguai e Argentina. Ele reúne representantes de núcleos policiais, de fiscalização e controle dos três países.
O núcleo também mapeia a permanência e eventuais passagens de terroristas naquela região, inclusive os potenciais para a prática de atentados.
Porém, segundo uma fonte desse órgão que pediu anonimato, operadores e simpatizantes do Hezbollah que estão na região da tríplice fronteira dificilmente praticam atos de terrorismo ou crimes violentos. Eles operam geralmente na lavagem de dinheiro e com envios mensais de recursos às suas lideranças no Oriente Médio.
Uma das reuniões realizadas nesta semana tratou da possível chegada de novos membros do Hezbollah após o início da invasão do Líbano por Israel. Não foram descartados riscos de atentados em países da América do Sul. As polícias devem se focar em tentar prender terroristas que cheguem na região em buca de refúgio.
No fim de semana, a Sociedade Beneficente Islâmica de Foz do Iguaçu (PR) publicou em suas redes sociais um convite a uma celebração de luto pela morte de Hassan Nasrallah, líder do grupo terrorista Hezbollah. Nasrallah foi morto na sexta-feira (27) pelo exército israelense. A Sociedade o chamou de “saudoso falecido mártir”.
Para o advogado especialista em segurança pública, Márcio Antunes, há um risco iminente de avanço de terroristas em fuga do Líbano sobre as fronteiras da América do Sul, facilitada pela aproximação com grupos criminosos regionais.
“E aqui entra, de fato, as regiões de fronteira entre Paraguai, Brasil e Argentina. A Argentina, por ter sofrido um grave atentado há 30 anos, tem medidas de controle mais severas para a entrada de estrangeiros, mesmo assim, esses núcleos estão e seguem rondando a região”, avalia.
Hezbollah está no Brasil há quase duas décadas
Investigações, tanto de núcleos brasileiros da Polícia Federal quanto internacionais, revelam uma ligação, de décadas, do Hezbollah com o Brasil e sua relação com o crime organizado brasileiro, principalmente PCC e CV.
Documentos e investigações policiais indicam que o Comando Vermelho foi quem colocou o grupo extremista libanês em esquemas criminosos do Brasil, até chegar na parceria atual com o PCC. Segundo o pesquisador especialista em crime organizado, Diorgeres de Assis Victório, além de operar com a prática de lavagem de dinheiro, o Hezbollah já se envolveu com contrabando de cigarros, tráfico de armas, de drogas e outras modalidades criminosas.
O grupo terrorista teria negociado com o PCC a proteção de seus integrantes que são presos e acabam indo parar no sistema prisional brasileiro. Isso porque a facção criminosa brasileira domina os presídios em território nacional.
Segundo Victorio, muitos terroristas ligados ao Hezbollah deixam rastros no território brasileiro, mas é impossível avaliar com precisão onde estão fixados. “A imensidão do Brasil favorece o ingresso de membros do Hezbollah em nosso país e dificulta a localização deles, tendo em vista que via de regra criminosos não têm por hábito fixarem residência. Eles vivem mudando de lugar para não serem presos, assim como vivem mudando os números de celulares para que não sejam vítimas de grampo judicial”, alerta.
PF já identificou tentativas de recrutamento de terroristas no Brasil para atuação no exterior
No fim do ano passado uma investigação da Divisão de Enfrentamento ao Terrorismo da Polícia Federal indiciou dois sírios naturalizados brasileiros que teriam tentado recrutar pessoas no Brasil para participar de ataques terroristas no Oriente Médio.
Foram identificados ao menos três brasileiros que teriam seguido para o Líbano com passagens pagas, hospedagem e pagamento em dinheiro. Os apontados como integrantes e operadores do Hezbollah no Brasil foram presos.
Durante a operação Trapiche da PF, em novembro passado, outros dois homens foram presos acusados de integrarem o Hezbollah e de planejar ataques a sinagogas no Brasil. Porém, um dos momentos mais expressivos sobre a presença de membros do Hezbollah no Brasil foi registrado em 2018.
Um dos nomes fortes do Hezbollah, Assad Ahmad Barakat (do clã Barakat), responsável pelo financiamento da ação terrorista contra a associação judaica argentina Amia, em 1994, foi preso no Brasil. “Os Estados Unidos o acusaram de ser um dos grandes nomes do terrorismo islâmico na região. Barakat é apontado como dono de ao menos duas empresas que, de acordo com o Departamento do Tesouro americano, seriam usadas em operações de financiamento envolvendo células do Hezbollah na América do Sul e no Caribe”, afirma o pesquisador Diorgeres de Assis Victório.
Em julho de 2020, dois anos após sua prisão, o Brasil o extraditou para o Paraguai que, em 2021, o expulsou. Naquele ano o criminoso retornou ao Brasil.
Segundo o Ministério Público Federal (MPF) em 2020 uma operação conjunta desarticulou uma célula terrorista do Hezbollah na tríplice fronteira. “Três cidadãos do Líbano, suspeitos de participar do grupo terrorista Hezbollah, detidos no Paraguai, foram extraditados para os Estados Unidos. Um dos libaneses tem mais de 31 acusações criminais relacionadas ao terrorismo”, descreve o MPF.
A operação chamada “Operação Sem Fronteiras”, que culminou com a extradição dos árabes, contou com ações conjuntas entre Argentina, Brasil, Chile, Estados Unidos e Romênia. “O trabalho de cooperação entre esses países revelou que os três suspeitos enviavam grandes quantidades de cocaína para os EUA, Europa e Oriente Médio, e o dinheiro proveniente deste tráfico era usado para financiar o grupo terrorista Hezbollah”, explica o MPF.